quinta-feira, setembro 30, 2004

Por vezes a ficção supera a realidade


Rebuscando nos meus canhenhos, encontrei um texto de ficção que pretendia vaticinar o desempenho dos futebolistas lusos, no Mundial de má memória de 2002. Serve o "textículo" para compensar a falta de inspiração que me atacou nos últimos tempos, assim como para ilustrar uma rara ocorrência em que a realidade ficou anos-luz atrás da ficção. Desnecessário será lembrar que os ditos atletas vieram para casa ao fim de 3 jogos, não sem antes terem protagonizado o burlesco episódio do "soco no árbitro".
Perdoai-lhes, senhor, que eles não sabem o que escrevem...

O mago da bola de Cautchu

Tive um sonho a noite passada. Com números. Foi assim:

Deambulando por uma vila de Vagos mítica, envolta em denso nevoeiro, passo por uma janela onde se podia ver um letreiro com os seguintes dizeres:
PROFESSOR
MURTA KARMA
Licenciado em aritmomancia
Resultados desportivos
Totobola
Previsões para toda a época
Descontos especiais para grupo

Ferido pela curiosidade, resolvi-me a entrar. No vestíbulo, encontrei uma senhora idosa que me levantou os olhos ensonados e baços, pigarreou e disse sibilantemente em sotaque brasileiro: “O Professor Karma já vem. Murta Karma.” E sumiu-se por entre um cortinado de púrpura desbotada.
Quando, meia-hora depois, já me dispunha a abalar para outra freguesia, surge a velhota novamente, agora com um ferro de engomar dos antigos, cheio de brasas incandescentes. Mandou-me entrar e seguiu-me silenciosamente, como quem desliza. A sala estava parcamente mobilada; apenas duas cadeiras e uma mesa de tosco pinho, no centro da qual se destacava uma luzidia bola de futebol apoiada numa base dourada.
Reclinado na cadeira, um cinquentão de longas barbas grisalhas e olhos negros coruscantes fitava-me com o seu olhar magnético e, sem nada dizer, parecia estudar-me desdenhosamente.
Interrompi o longo silêncio timidamente: “Gosto muito do seu turbante...”
Num ápice, o mago retirou de debaixo da túnica não sei que pós e lançou-os sobre o brasido que a mulher deixara no chão, provocando uma fumarada impenetrável, enquanto proferia cavas e misteriosas palavras.
A ladainha foi interrompida dramaticamente por um violento acesso de tosse que prostrou o esotérico por terra. Abri a janela e ajudei-o a recuperar.
“Tenho que me deixar destas coisas ou ainda arranjo um problema pulmonar. O Diabo é que as pessoas só se impressionam com estes truques de pacotilha.”
Retorqui-lhe: “Poupe-me o folclore e vamos ao que interessa. A minha curiosidade vai toda para a prestação da selecção nacional no Mundial 2002.”
“Ah, caro amigo, está a falar com a pessoa indicada. Queira sentar-se.”
“Diga-me uma coisa; esta bola não deveria ser de cristal?”
“Ui, custam os olhos da cara! Além disso, esta é melhor para o negócio do desporto. São os meus melhores clientes. É malta muito supersticiosa, sabia? Esta bola é uma ideia de um sobrinho meu, que anda em Marketing. Muito bem, perscrutemos então a bola...”
Momentaneamente, a sala começou a escurecer e o esférico começou a libertar um brilho verde iridiscente. Para meu assombro, começam a surgir números: primeiro, o 3; depois, o 7; a seguir, o 10; e, por fim, o 21.
“Que significa isto?”
“É obvio, não vê? Nesta sequência de números está a fórmula do sucesso da selecção. Eu sigo o ensinamento de Pitágoras, que disse: «tudo é formado de acordo com o Número.» Só temos que os saber ler. Vejamos;
O 3 é o resultado do 1, que é o céu, e do 2, que é a terra. Significa a perfeição e a totalidade, como, por exemplo, a Santíssima Trindade.”
Esta é a terceira vez que participamos num Mundial, na primeira vez foi o céu, com grande sucesso do Eusébio e companhia, na segunda, os Infantes voaram mais baixinho, junto à terra. Agora, será a vitória final.”
“Mas - interrompi - quem enverga esse número é o Abel Xavier e não lhe vejo grande perfeição. Por causa da mão dele, foi-se o Europeu.”
“Meu caro, o caminho da perfeição é uma escada em caracol com muitos degraus partidos. O número 3 é o número de Deus, e a mão de Abel desta vez marcará um golo. Será uma reedição da famosa “mão de Deus” interpretada por Maradona. Aliás, aquela cor de cabelo é precisamente para isso, para ofuscar a visão do árbitro.”
“Então e o 7?”
“Sete são as esferas celestes e os graus de perfeição, assim como as maravilhas do mundo. Sete serão os jogos até à final, onde Figo, o 7, atingirá o seu maior esplendor. O 10 é o regresso à unidade, depois dos 9 algarismos, é Rui Costa, motor anímico e estratega da equipa. 21 é o símbolo da maturidade, embora esteja personificado na juventude do ponta-de-lança da Fiorentina. É um fechar de 3 ciclos de 7 (os jogos até à final) e simboliza a plenitude, o objectivo conseguido. Será Nuno Gomes a marcar o golo que garantirá a Taça! E há mais, caro amigo! Some todos os algarismos e faça a prova dos nove.”
“3 e 7, são 10, mais 1, 2 e 1, são 14; noves fora, 5.”
“Deve também juntar o zero, para fazer 50.”
“E que significa o 50?”
“É a conta, perspicaz cliente. Deve-me 50 euros.”
“E como é que eu sei que tudo isso é verdade?”
“A verdade vai começar a manifestar-se nos seus dedos do pé. Não a sente?”

Acordei com uma dor aguda no dedão do pé. Maldito gato, que não perde o hábito de me despertar desta maneira.

Qualquer semelhança entre o sonho e a realidade é pura coincidência. Será?

terça-feira, setembro 28, 2004

O teu sarcasmo

A pedido de várias famílias (a quem já gratifiquei principescamente), lanço no éter mais um poemeto de minha autoria sobre um dos venenos mais poderosos da convivência humana.

Bem hajam

O teu sarcasmo

Por detrás da cortina do sarcasmo
Que medos se escondem nervosos?
Que larvas habitam os túneis da impaciência?
Que ecos de ideal perdido numa noite de batota?
Que passos estropiados pedem esmola?
Que sonhos asfixiados dentro de frascos?
Que persianas de remorso escancaradas?
Que agonias embrulhadas em mudez?
Que armadilhas de sorriso embalsamado?
Por dentro dos óculos baços de incompreensão
Que térmitas de vingança subterrânea?

Só pode ser um temor letal no espelho

Mito, 20-09-2003

segunda-feira, setembro 27, 2004

E vai daí, deu-me vontade de partilhar com algum eventual cibernauta a prosa desempoeirada de Katherine Vaz, um excerto retirado da obra com que esta californiana de origem portuguesa venceu o prémio "Drue Heiz Literature Prize". Boas leituras!

Quando Daniel desceu de pijama vestido, George disse: Dá já meia volta e toca a ir para a cama, miúdo.
Não, papá, vou ficar a ver contigo.
Vais mas é já direitinho para a cama.
A mamã disse que eu podia ficar contigo se quisesse. Disse que as orquídeas estavam a fazer-me bem.
Estou a ver que a mamã é uma hippie permissiva. Deixa-se as crianças fazer o que lhes apetece e elas perdem o rumo na vida.
Ela é o quê?
Nada. Hippie é o tipo de pessoa que todos nós éramos quando pensávamos que tudo ia acabar em bem, porque era esse o nosso desejo.
Ah! Julguei que a mamã era de Portugal, disse Daniel, sem compreender muito bem o que o pai estava a dizer.
E era. Veio para cá porque, quando éramos mais novos, a Califórnia era um sítio fantástico para se ser hippie. Mas não falemos de nós. Conversemos antes sobre ti, amigão. Como é que as orquídeas estão a fazer-te bem exactamente?
Não sei. A Irmã Angela diz que estão.
E estão?
Eu desenhei umas mãos grandes de urso a segurar numa.
Estou a ver. Fantástico. E como é que achas que isso te faz bem, amigão?
Daniel suspirou profundamente, para indicar que só queria estar ao lado dele e não ter de dissecar tudo o que diziam. Levantou uma ponta do cobertor que tapava o pai e enfiou-se por baixo.
O pai estava quente.
George pôs o braço à sua volta e recostou-se contra o apainelado da parede. Maria Luísa e a professora chamavam-lhe mãos de monstro, mas Daniel dizia que eram mãos de urso. George mal conseguia descortinar o que devia chamar às coisas, quanto mais como repará-las. Que podia ele chamar ao estender do braço, naquela ocasião, e vê-lo transformar-se numa polpa esfanicada sob o efeito de uma bala que continuou a sua trajectória, indo explodir no seu companheiro? O braço estava a envelhecer muito mais depressa do que o resto do seu corpo, os pêlos já prematuramente brancos. Nunca imaginara que partes da mesma pessoa pudessem envelhecer a ritmos diferentes. Era uma coisa que via, mas não podia reparar, como via que aquilo que Daniel desenhava era um símbolo qualquer da dor do pai: mãos desligadas, porque queriam escapar ao braço coberto de pêlos brancos.
Diz-me o que achas que as tuas mãos de urso estavam a fazer ao segurar na orquídea, disse George.
Oh, papá. Daniel esticou as pernas com uma pancada debaixo do cobertor. São mãos. Era uma flor. Uma flor não pode ser só uma flor?
Quem dera que fosse verdade. Mas enquanto Deus não decidir falar directamente connosco, receio bem que tenhamos de nos questionar sobre o que representam as coisas. Sinto muito que seja esta a regra, mas não fui eu que a inventei.
Daniel respirou suavemente. O pai parecia estar outra vez a dizer maluqueiras. Estava furioso consigo mesmo por ter falado à mãe daquele desenho estúpido e com a Irmã Angela por ter dito que era bom. Dava ideia de que o pai havia de ir parar ao Inferno por pôr em causa as regras de Deus. Não é que Daniel estivesse seguro de acreditar em Deus. Pronto, pensou em voz alta dentro da cabeça. Agora ia para o Inferno como pai. A mãe e Deidre e o Mark e o Alexander iam provavelmente para o Céu e teriam de lhes mandar de comer.

Katherine Vaz, “Como Cultivar Orquídeas se Jardins: um Manual”, in Fado e Outras Histórias

domingo, setembro 26, 2004

Socráticos

Muita gente separa o pensamento grego em duas fases, intercaladas por um filósofo de que se sabe tão pouco: Sócrates. Comummente conhecido como “moscardo”, Sócrates não se terá dado ao trabalho de deixar obra escrita, talvez por isso deixando uma marca tão impressiva em tantos contemporâneos.
Os pensadores helénicos antes dele receberam a etiqueta de pré-socráticos; curiosamente, nenhum filósofo posterior mereceu o epíteto de pós-socrático ou mesmo socrático. Pelo simples motivo de que não era preciso. A partir de Sócrates, o racionalismo tornou-se tão natural como respirar.
Infelizmente para nós, no nosso panorama político, talvez não haja pré-socráticos, mas vai haver, de certeza, socráticos e pós-socráticos. José Sócrates dificilmente se tornará um marco incontornável do pensamento político; a muito custo conseguirá deflagrar uma chama que só pede uma pequena centelha; mas, por agora, parece ser a única pessoa capaz de liderar uma alternativa a este lodaçal que, lenta e inexoravelmente, vai tingindo a nossa vida, ameaçando mesmo a fímbria das nossas almas.
Verdadeiramente surpreendente foi o reaparecimento de Manuel Alegre, uma verdadeira Fénix Renascida da liberdade! Como ficaria bem esse desassombrado vate no palácio de Belém!

OBS.: Um Poeta pode ser Presidente da República? Um Presidente da República pode ser poeta? A vida pode ser vivida?

sábado, setembro 25, 2004

PEREGRINAÇÃO

Ziguezagueantes
Patinadores infatigáveis
Meus dedos peregrinos
Em latitudes tropicais

Hesitações
Aturdimentos
Farejar o ar e sentir o espasmo

É serena a linha do horizonte
No seu ondular de cumplicidade
E perdição

Pálpebras encandescidas
Abrem portas para o espanto
E desfazem labirintos com um cravar de unhas


Mito, 03/05/2001


sexta-feira, setembro 24, 2004

Sugestão Gastronómica (“Do not try this at home”)

Receita do país impossível ou “Como foi que fomos comidos”

Pegue-se num playboy com rutilâncias mediáticas e deixe-se a marinar em incontinência de soundbytes com um cálice de licor de São Bento. Pegue-se num empertigado ditadorzinho de opereta e reserve-se na caserna, rodeado de mocetões vestidos de verde.

Ao fim de dois anos, coloque-se as duas “peças” num recipiente de ir ao forno em forma rectangular recortada. Sirva-se no Bagão-restaurante, a bordo de um comboio em marcha-atrás, acompanhado de doses generosas de cicuta. E pronto, aí têm o “País Impossível”, onde não cai a Carmo nem o Trindade.
É fácil, mas não é barato.
Vai mesmo sair muito caro.

NOTA: No Bagão-restarante, a ementa é variada e extensíssima. Peça a lista, mas não tenha pressa, que houve um erro informático e as cozinheiras estão a passá-la à mão.

Cibernautas de todos os planetas

Cibernautas de todos os planetas: uni-vos! Juntai os vossos esforços, mobilizai a vossa sageza, envergai a vossa argúcia e espalhai pelos mil cantos das galáxias: evitai parar no mitografias, blog altamente prejudicial à saúde mental e susceptível de criar dependência. Beware!

Nota: não se garante total protecção contra a veia poética do blogger. É até possível que surja um ou outro poema.