quinta-feira, janeiro 27, 2005

Auschwitz

Piras de fumo empilhadas sobre as chaminés
Testemunham a morte dos meus irmãos
Têm a forma de um símbolo sagrado
Profanado nas aras da candura

Ecos de dor passeiam ainda pelos escombros
Procurando pelo seu corpo apanhado na surpresa do fim
Um silêncio amarfanhado corta o ar
E corrói o selo da natureza ultrajada

Escorrem das nuvens cordas de pétalas tristes
Há uma lâmina que risca sulcos nos nós do tempo
Piras de fumo empilhadas sobre as chaminés
Testemunham a morte dos meus irmãos

Choro os irmãos descidos ao infra-humano
A vítima e o algoz no mesma espiral de fezes
Que abismos de agonia que fragas de cerração
Terão trocado esses olhares quando se cruzaram?

Olhos fundos dedos descarnados um esgar de volúpia
Ante a quimera dum dia sem luz
O horizonte fica coberto de vultos empunhando pás
Talvez felizes talvez expectantes da terra húmida

Não consigo vislumbrar a fímbria do dia

Não consigo olhar o espelho
Não consigo olhar
Não consigo
Não

Ah, a crua náusea de não poder dizer nunca mais!

Mito, 27-01-2005

domingo, janeiro 23, 2005

Mais alto

É romaria obrigatória. Sobretudo, se houver crianças a maravilhar. Falo da costumeira viagem à serra da Estrela, em busca das neves perdidas e de vistas esplendorosas.
Neste, sábado, fui romeiro. Escolhendo um caminho menos convencional, meti rodas à estrada e serpenteei rumo à “torre”, passando por Tábua, pela malfada Comba Dão, por Mortágua (que levou a minha filhota a perguntar”Sabes o que é a Morte de Água, papá? É quando vem muita água e as pessoas ficam afogadas!”), por Oliveira do Hospital e, antes da ascensão final, pela veneranda Seia.
Desta vez, a neve resumia-se a alguns farrapos na paisagem e a faiscante espelhos de gelo nas escarpas. Paciência, da próxima vez será melhor.
No alto dos 1989 metros, fica o miserável centro comercial que sempre me provoca a náusea do atraso. À volta há sempre lixo no chão, sempre entulho no chão, sempre “restos” de obras, como “palettes” partidas e andaimes abandonados, pelo chão.
No sítio mais alto do continente, o olhar amarra-se necessariamente ao chão. E se corremos a refugiarmo-nos junto das lojas, somos assediados por untuosos vendedores que, encostados às ombreiras, nos convidam insistentemente a provar o queijo, numa repetição arrastada de cassete moribunda. Como é compreensível a vasta adesão – de cristãos e não cristãos – à fulgurante cena irada de Cristo contra os vendilhões do Templo!
Faz frio sem brilho. Resolvo-me a entrar num café-restaurante. Aí, sim, a altura a que nos encontramos é brindada em coerência: “Dá cá 75 cêntimos por um café que bebes, entre peluches e trenós de plástico!”.

Alguém tem um bilhete para o Pico?

quinta-feira, janeiro 13, 2005

Ritual

Abro um baú de pinho
Donde retiro saudades de ti, amor d’outrora
Estendo uma toalha de linho
No chão pejado de pestanas
Que tentam fugir janela fora

Sacudo a poeira fina
Da polaroid cinza-mágoa, amor d’outrora
Dedilho memórias na neblina
Densa de dores humanas
Que cobre a parede que chora

Mudo a vela que ainda arde
No jazigo aéreo que te embala, amor d’outrora
Prometo voltar mais tarde
Longe de horas insanas
Com vagares de demora

Estarás aí?

Mito, 13-01-2005

terça-feira, janeiro 11, 2005

Eça não esquece

Como a inspiração me falta e o pobre do blog ameaça já morrer à míngua, permito-me transcrever, com a obrigatória vénia, este saboroso naco de prosa do tão sagaz quão excêntrico Pulido Valente. Para além de ser certeiro e sintético, o artigo, publicado na última página do Público de 19 de Dezembro último, inclui devida homenagem ao sardónico Eça.


A dúvida de Cavaco

Cavaco pergunta se em 2015 ou 2020 vamos ficar ao lado da França e da Alemanha ou ao lado Roménia, Bulgária, Estónia, Letónia, Lituânia e Polónia. Por outras palavras, Cavaco pergunta se vamos ficar na "verdadeira" Europa, a do Ocidente, ou, como sempre, vamos continuar à margem. Boa pergunta, velha pergunta. O actual desespero do país não deriva no fundo da estagnação económica (tivemos pior), nem da crise política (tivemos muito pior). O que nos preocupa, o que nos rói é o "atraso", a "distância" que aumenta e nos separa da "civilização". Queríamos ser como "eles" são "lá fora" e até, um breve momento, pensámos que seríamos, mas parece agora que não somos, nem nunca seremos. Esta humilhação, esta catástrofe, desabou invariavelmente sobre Portugal, quando, a seguir a um período de amargo isolamento, a comunicação com a Europa (repito com a do Ocidente, o nosso modelo) foi intensa e fácil, e permitiu a esperança de um país "regenerado" ou “modernizado” ou "renovado", que se recusou a nascer. Em 1851, depois do absolutismo e das guerras civis, durante o “fontismo”, Portugal sonhou ardentemente com a Europa. Quinze anos mais tarde, o sonho estava desfeito e, em seu lugar, já se instalara um abatimento, um desprezo e um azedume, que Eça exprimiu melhor que ninguém e fez dele o escritor perene da língua. A Pátria “decadente” não passava, afinal, de uma coisa risível.
E à volta dessa "coisa" mesquinha e sem destino, a República e a Ditadura tornaram a levantar a muralha da China. A ideia da Europa era interdita; era uma veleidade sem sentido. Com o "25 de Abril", Soares, primeiro, e Cavaco, depois, ressuscitaram a grande fantasia nacional. Desta vez, sim. Portugal pertencia oficialmente à Europa, Portugal ia mesmo "sair da cauda da Europa". O "fontismo" trouxera a "ordem" e o comboio. O "cavaquismo" trouxe virtuosamente o Estado Previdência e a auto-estrada. O país, no essencial, não mudou. Em pouco tempo, afogado em dívidas, caía na sua habitual tristeza e esbracejava à procura de uma salvação qualquer. Infelizmente, hoje não há sequer um Eça para contar a história.