domingo, dezembro 31, 2006

Cíclico


Por entre o histrionismo das comemorações e o feérico das instalações, entreabre-se a janela do que nos reserva a vida em mais um ano. Que todos vivam muito e provem as delícias do mistério da existência. O mais é pó...

ou éter...

domingo, novembro 26, 2006

E porque a morte biológica pode ser apenas mais uma semente



















de profundis amamus
Ontem
às onze
fumaste
um cigarro
encontrei-te
sentado
ficámos para perder
todos os teus eléctricos
os meus
estavam perdidos
por natureza própria
Andámos
dez quilómetros
a pé
ninguém nos viu passar
excepto
claro
os porteiros
é da natureza das coisas
ser-se visto
pelos porteiros
Olha
como só tu sabes olhar
a rua os costumes
O Público
o vinco das tuas calças
está cheio de frio
e há quatro mil pessoas interessadas
nisso
Não faz mal abracem-me
os teus olhos
de extremo a extremo azuis
vai ser assim durante muito tempo
decorrerão muitos séculos antes de nós
mas não te importes
não te importes
muito
nós só temos a ver
com o presente
perfeito
corsários de olhos de gato intransponível
maravilhados maravilhosos únicos
nem pretérito nem futuro tem
o estranho verbo nosso


Mário Cesariny

quarta-feira, novembro 01, 2006

sexta-feira, outubro 06, 2006

Aguarela.

Manhã cedo. Orvalho a vestir toda a vegetação rasteira. Verdes mortiços competindo com cinzentos baços na paleta. O reino da água invadindo os terrenos agrícolas. Uma batalha pacífica e gloriosa aos primeiros raios de sol.
O portão abre-se, rangendo. Uma casa modesta, prenhe de serenidade rural, deixa sair os habitantes. O homem, tronco de muitos círculos de idade, caminha pesada e muito muito muito lentamente. Dirige-se para a rua, empurrando o velho motociclo. Não se sabe qual dos dois amigos apoia qual. Talvez os dois sejam um só. As rodas de um não se movem mais rápido que as pernas do outro. O coração de um não faz mais ruído que o motor calado do outro.
Já passaram largos minutos. O homem está agora na berma da estrada. Respira fundo. Ficou imóvel. A sua silhueta ganha contornos épicos na contraluz matinal. Sorve o ar fresco uma vez mais. Sente-se ainda vivo.
Num esforço sobre-humano, levanta uma das pernas. Com a lentidão da dor, galga a vertigem do selim e consegue escarranchar-se no velho motociclo. Toma fôlego. Titubeante, periclitante, com uma pancada seca do pé, põe o veículo a casquinar vontades. Um rolo de fumo anuncia a vitória motorizada. Com o olhar amarrado ao horizonte, afivela cuidadosamente o capacete. Parece ir desmoronar-se a qualquer momento.
Atrás dele, impávida, automática, a mulher aconchega-se na parte de trás do assento.
E partem, para mais um dia na vida.

sexta-feira, setembro 29, 2006

Nova nomenclatura linguística


A famigerada TLEBS em artigo de jornal, cuja leitura se sugere, e do qual se recolhe um excerto significativo:

"Nenhum pediatra diz a uma criança com dores de barriga: você tem uma crise gástrica moxirreica. isto é uma questão de senso-comum", considera. "No entanto, crianças de seis podem ser confrontadas com questões como: 'Explicite o valor anafórico do conector'. Que benefícios é que isso vai trazer?"

Álvaro Gomes


Para ler o artigo todo

http://dn.sapo.pt/2006/09/28/sociedade/novos_termos_gramaticais_geram_contr.html

quinta-feira, setembro 21, 2006

Quem parte


Gostaria de saudar a oportunidade da edição de um suplemento dedicado à Educação, incluído no número de hoje (21-09-06) da revista Visão, que, para além de numerosos gráficos e estatísticas, contempla um artigo de fundo de uma socióloga e uma página de lugares-comuns de uma ministra.
No entanto, torna-se necessário tecer alguns reparos. A primeira parte da revista é dedicada à apresentação de dados estatísticos e conclusões oriundas do relatório da OCDE "Education at a Glance 2006". Nesta secção, são jornalistas que comentam os dados apresentados, interpretam os respectivos gráficos e sobretudo lançam as linhas de leitura para um estudo comparativo. Invariavelmente, focam-se aspectos que tendem a culpabilizar e descredibilizar a classe docente.

As fontes dos dados, para além do referido estudo, são, na sua maioria, governamentais e não são alvo de uma análise verdadeiramente crítica e objectiva. Se não, vejamos o exemplo mais gritante:
São apresentados os números do decréscimo da população estudantil e o paradoxal aumento do número de docentes. A única resposta avançada pelo jornalista é que "a explicação, qualquer que seja, foge à lógica". Mais à frente, uma tabela que ilustra o número de alunos por turma mostra que os professores portugueses, tal como os gregos, são os que menos discentes têm: apenas dez. Explicação: também nenhuma, para além da referência aos famigerados horários-zero e, de forma implícita, o facto de os professores com mais anos de serviço terem menos horas de serviço. Sem prejuízo da importância destes factores, parece-me que se olvidam outras variáveis com grande relevância.

Como sempre, mexer em números é passível das mais diversas interpretações e manipulações. Já diz o povo: "Quem parte e reparte e não fica com a melhor parte, ou não tem engenho ou não tem arte". Se fôssemos aprofundar os processos de como se chega a estes números, ficaríamos talvez chocados com a sua falibilidade e até credibilidade. Os números estão lá. Mas como se chegou a eles?

Quando se faz jornalismo, sobretudo com o nível que deve ter uma revista como a Visão, impõe-se questionar os números e lançar hipóteses que vão para lá da primeira impressão, do tal "relance". Seria talvez também interessante ouvir outras vozes que não apenas as das cúpulas e dos intelectuais de serviço, ouvir as vozes que estão no terreno. Uma simples conversa com qualquer professor comum poderia pôr em evidência este simples facto, quase sempre escamoteado nestas análises, porque não dá jeito nenhum.Refiro-me, em concreto, à pululante existência de horários incompletos. Quantos são eles? Como se repartem? Quantos professores têm apenas 6, 8, 10 horas de serviço (ganhando proporcionalmente e cerceados de outros direitos, como o subsídio de alimentação)? De que forma esta variabilidade afecta os números referidos anteriormente: o ratio de professores / alunos e o próprio número de docentes? E como se apresenta esta variável noutros países? E que dizer da sazonalidade da colocação desses professores? Alguns trabalham 2, 3 , 4 meses ou até menos, em substituições e contratos de curta duração. De que forma podemos tomar, em Portugal, o número de professores como um indicador estável, passível de estabelecer rácios e comparações com dados de outros países?

Tem mérito a iniciativa da Visão, mas merece igualmente reparos: é necessário ouvir a outra parte. Para ter mais engenho e mais arte.

domingo, setembro 10, 2006

Rita Catita


É verdade. Admito-o. Comprei o Expresso deste fim-de-semana. Achei que comprar o "Lost in Translation" por dois euros e oitenta era uma pechincha. Mas lá acabei por trazer o papel também. Vagueando displicentemente pelas páginas da Única, revista do dito cujo, reconheço a histérica e mediática filha do Ferro Rodrigues. Divulgava ela, na sua rubriquita, um blog supostamente de "bolinha vermelha", que aliava valor literário a um certo pendor erótico. Evidentemente que retirou alguns excertos mais picantes para espicaçar o apetite pelo dito blog - o razoavelmente conhecido ana-de-amsterdam.blogspot.com -, enaltecendo a sua qualidade: "É para mim a mais recente revelação blogosférica." E lá seguiu para outras paragens, com o afã apressado de starlet televisiva. Com certeza não teve tempo para ler o post da dita Ana de 28 de Agosto, intitulado "As cabras capadas (1)" e que, com a merecida vénia, passo a citar

Ter comentários num blog é o mesmo que deixar aberta a porta da nossa casa e deixar entrar no nosso espaço, mexer nos nossos objectos, gente que vai ao teatro ver espectáculos da Teresa Guilherme, gente que lê livros da Margarida Rebelo Pinto e afins, gente que gosta da Rita Ferro Rodrigues e da Margarida Pinto Correia (...)

Obrigado, Ana!

domingo, setembro 03, 2006

Azul













Vogo devagar nas vagas mansas
A tinta azul escorre-me dos cabelos até aos ombros
E lava-me as têmporas de ilusões
Nadar é uma forma de existir como outra qualquer
Nada como um peixe nada como uma estrela nada como uma vontade

Vogo devagar nas águas ancestrais
Sobre a cabeça o sol faísca e risca o céu como um estilete
A brancura nítida do azul em explosão
Mil pequenos dedos me embalam e afagam
Nada como um peixe nada como uma certeza nada como um sonho

Mil outros corpos vogam devagar nas vagas calmas
Incandescentes como eu
Chicoteados de luz
Olhares cravados na flor azul
Bêbados de ternura
Naquele instante cego e ledo
Antes de espreitar o horror do fundo


Mito, 3 de Setembro 2006

sexta-feira, agosto 25, 2006

Zé Mário


Carrega a dor da utopia. Mas não se conforma no rótulo de "lírico" de esquerda. Destila o desencanto e às vezes o ressentimento por um mundo que caminha para os antípodas do seu sonho. Mas tem uma obra singularíssima e belíssimas músicas, algumas das quais se podem escutar em http://www.2020mm.com/ecards/JoseMarioBranco/. Destaco o tocante "Do que um Homem é Capaz" ou o desconcertante "O Papão do Anão". A maior parte do álbum Resistir é Vencer assume contornos de canção de combate, a dita "música de intervenção". Ouça-se a "Canção dos Despedidos":

Nós somos lixo
Já não há gente, há só lixo
Dispensável, descartável, reciclável

O artista define o seu lugar ao lado do povo, fazendo parte dele, não abdicando da sua condição.

E o tempo a passar
E eu a cantar
Eu também faço parte do lixo

É inegável a presença de alguns "tiques" muito datados e talvez uma certa ingenuidade na análise social - será tudo tão simples?
Porém, não esqueço a coerência, a verticalidade e a sensibilidade do autor que um dia me pôs a chorar com uma interpretação da sua canção "Eu vim de longe". Somos todos companheiros nesta caminhada onde "Há que humanizar a humanidade" (Canção dos despedidos).

quinta-feira, agosto 17, 2006


É certo que, apesar de nunca estar só a maior parte do tempo, o homem vive e morre sozinho consigo mesmo. A solidão pode ser uma dor funda quando se é um animal gregário. Cada qual se revê nos seus pares, quer por identificação, quer por oposição, quer ainda – e sobretudo – pela interacção. Mesmo os que optam pelo isolamento o fazem com a consciência de estarem a quebrar a ordem natural.

Numa recente visita ao Zoo da Maia, chocou-me particularmente a situação do único orangotango existente: imóvel, contemplativo, parado na sua tristeza. O enorme primata permanece sentado, de frente para os visitantes, encostado ao espesso vidro, já não com qualquer tom acusatório no olhar, mas como uma efígie ao desalento. Por vezes, estica o braço e consegue colocar a gigantesca mão por cima do vidro, no pequeno espaço aberto. E lá no alto, em contraste com o vidro embaciado, paira essa mão como uma garrafa lançada ao mar. Essa mão que nos une.

domingo, agosto 13, 2006

Revelação


Está na edição de hoje, domingo, do Público. Deixou-me boquiaberto. O Nobel da Literatura, Gunter Grass, confessou, aos 78 anos, que fez parte das famigeradas SS. A mim, que dele só li O Meu Século - um retrato da Alemanha do século XX, em que cada capítulo corresponde a um ano - , esta notícia deixou-me razoavelmente chocado. Um escritor que fez a sua carreira exorcizando o nazismo deveria ter revelado este segredo há mais tempo. Mas também é fácil criticar... quantos de nós estariam dispostos a escancarar um esqueleto no armário deste tamanho?

terça-feira, agosto 08, 2006

Mais canais temáticos


Antes do advento das televisões privadas, havia só dois canais generalistas, um deles com maior propensão cultural e para as ditas "modalidades", ou seja, os desportos que o futebol esmaga com a sua preponderância. Depois, chegaram mais duas estações, também elas genaralistas, e pensámos que teríamos direito a maior diversidade. Na verdade, passaram todas a emitir o mesmo tipo de programa à mesma hora, pois todas elas se baseiam em estudos de mercado e na percepção dos segmentos de público-alvo a atingir em dado momento. Anos depois, voltamos a ter duas televisões generalistas e do Estado, a que se somam dois canais temáticos de telenovelas e fofoquices que dão pelo nome de SIC e de TVI, ou melhor, canal Flori-Brasil e Morangada com Todos. Mais uma prova que a liberalização e a diversidade de ofertas nem sempre redunda numa maior satisfação do público e, sobretudo, num acréscimo de qualidade.

quinta-feira, agosto 03, 2006

Sentada














Sentada estava ela a flor do campo
Repousando numa memória triste
Fragas dum tempo que já não existe
Vendo a alma fugir num pirilampo

Sentada estava ela a voz da seara
Navegando entre as raízes do fogo
Que sacraliza as pedras desse jogo
De tapas o rosto e eu escondo a cara

Sentado estava eu pensando nela
Vendo-a na planura alentejana
Erguer-se em miragem que não engana
Lançar-se contra os vidros da janela

Sentada estavas tu cega e distante
Tricotando segredos tumulares
Cada falésia que sobrevoares
São feridas vivas deste gigante

Mito (Aljezur, 01-08-06)

terça-feira, agosto 01, 2006

Silly season


Coisas que se ouvem no quarto de banho do parque de campismo:

- Papá, papá! Onde estás? Papá!
- Estou aqui, filho!
- Onde estás papá?
- Estou na casa de banho, filho, agora não posso!
- Papá, trouxeste a minha escova de dentes!
- Não trouxe nada, filho!
- Trouxeste, trouxeste! Essa é minha!
- Não é nada, não chateies!
- Mas a mamã disse que é minha!
- Não é nada, porra!
- Ó papá, mas eu já lavei uma vez com essa escova do Benfica!
- É minha e acabou!
- Vou dizer à mamã! Buáááááá´!

domingo, julho 30, 2006

As férias continuam...


Ontem, sábado, belafesta popular na praia da Arrifana: a Festa dos Pescadores! Animação musical, sardinas assada com pão alentejano e bebidas à discrição. Tudo oferecido pelos pescadores aos visitantes, que poderiam colaborar comprando a caneca comemorativa, que se enchia depois vezes sem conta com o loiro líquido. Mas o melhor de tudo, para além da confraternização: a fabulosa vista e a omnipresença do mar. Viva os pescadores da Arrifana e a costa vicentina!

terça-feira, julho 25, 2006

Sem ser do Dan Brown

Bernadette Soubirous, a vidente de Lourdes, escreveu um diário em que revelava os três segredos que a Virgem lhe confiara. O Vaticano resolve revelar o terceiro, que prevê, século e meio depois, um importante acontecimento para a semana seguinte. De entre o grande afluxo de milhões de pessoas que acorrem à cidade dos Pirenéus, acompanhamos algumas personagens de diferentes motivações: uma jornalista americana que tenta, com um furo jornalístico, assegurar o seu futuro profissional como correspondente em Paris; uma jovem e inteligente guia turística francesa que quer obter uma grande quantia de dinheiro para poder ingressar numa carreira na ONU; um grande dirigente soviético, condenado a uma doença terminal, que parte incógnito para Lourdes em busca da sua última hipótese de ter saúde e assumir os destinos da superpotência; um escritor e terrorista basco, com um plano de atentado espectacular na gruta das aparições; uma jovem e belíssima actriz italiana que cegou e crê na sua recuperação no santuário; uma inglesa "miraculada" que viu o seu sarcoma obliterado por um milagre de Lourdes e cujo marido tenta capitalizar em negócios esse fenómeno; um jovem advogado americano, vítima da mesma doença e que voa para a cidade francesa em busca de intervenção divina, na companhia da sua mulher, psicóloga clínica que o pretende demover a todo o custo e submeter-se imediatamente a uma perigosa intervenção cirúrgica, para isso, vai ter de desmascarar a que ela considera ser a fraude de Lourdes.
Ingredientes mais que suficientes para um emocionante leitura de Verão, uma narrativa conduzida magistralmente por Irving Wallace, em que fé e cepticismo se entrecruzam em jeito de contagem decrescente. O título é O Milagre.

sexta-feira, julho 21, 2006

O Estado do Debate


Ficámos sem saber por que motivo se acabou com as provas-modelo dos exames, particularmente úteis para disciplinas de programas novos; ficámos sem saber por que razão se fez orelhas moucas a todas as entidades credíveis que lançaram alertas acerca das dificuldades que advinham da coexistência de várias reformas e da aplicação de novos programas; ficámos sem saber por que carga de água se criou uma excepção para duas disciplinas apenas, em detrimento de outras, ficámos sem saber a resposta a tantas outras questões que se colocaram ontem na sessão parlamentar.
Mas ficámos a saber que não vale a pena solicitar mais debates de urgência com esta ministra da Educação, uma vez que, sejam quais forem as perguntas, as respostas serão sempre as mesmas: aquelas que a ministra rabisca previamente em casa, em jeito de conferência de imprensa. Mais uma sessão para lamentar. E tudo seria até risível, não fora este amargo de boca de saber a vida a andar para trás.

sábado, julho 15, 2006

A bicha

Um povo é capaz de mudar muito por fora.

Sentada ao volante do seu desportivo, parada numa bicha, sob o sol impiedoso, uma loura platinada mantém uma conversa lânguida ao telemóvel topo-de-gama-último-modelo, sacudindo o rabo de cavalo em “câmara lenta”, num gesto estudado. O bronzeado perfeito dos ombros contrasta com os faiscantes óculos de sol Christian-Dior-ou-coisa-que-o-valha. Uma digna descendente da Milady “aromática e normal” de Cesário Verde.

Acabou a conversa, mesmo a tempo de reiniciar a marcha, pois a bicha já permite um fluxo vagaroso. Acende um cigarro voluptuosamente, mantendo o braço esquerdo de fora, flectido em pose. Sorve o fumo lentamente e expele-o logo de seguida, prolongando esse gesto de lábios o máximo de tempo possível. A meio do cigarro, lança-o com toda a naturalidade para a estrada. Coitadinhos dos carrinhos desportivinhos descapotaveizinhos que não têm cinzeirinhos!...

Tudo isto eu observo, com olhar censor e indignado, enterrado nos estofos do meu Wolksvagen topo-de-gama, enquanto vou escarafunchando macacos do nariz.

quarta-feira, julho 12, 2006

Sempre o mar


Sempre o mar. Hoje voltei a ficar três horas na orla do espumaço, ao alcance de toda a fúria das ondas. Enfrentei a força da corrente e exultei com os salpicos violentos de sal. Enterrei-me na areia até ao joelho ao saltar dos rochedos. Ouvi a voz majestosa e tonitruante de Neptuno, oficiei ao som dos bramidos, enquanto os raios de sol poente douravam a minha auréola.
Ali me reencontrei, eu que sou de um signo Terra, mas nunca consegui viver longe do Atlântico.
Saudades do pai?

domingo, julho 02, 2006

Hoje apeteceu-me


Hoje apeteceu-me escrever um poema
Como quem olha para a vida e a descobre pela primeira vez
E se espanta por ela ter sempre ali estado apesar de nunca à nossa espera

Hoje quis escrever um poema
Como quem quer a sorte que nunca teve e nunca procurou
Mas sabe que está proibido de o fazer sem antes percorrer o caminho

Hoje sonhei que escrevera um poema
Como quem acorda e não sabe se sonhou se viveu
Ou se sequer está acordado para o poder ter sonhado

Hoje pensei escrever um poema
E quase que o escrevia…

Mito, 2 de Julho de 2006

terça-feira, abril 18, 2006

Manual de Sobrevivência


O relógio da modernidade não pára. É necessário apanhar freneticamente o comboio das novas tecnologias. A urgência da actualização é premente. Temos de acompanhar a mudança constante e estar prontos para a novidade. Deve ser por isso que o Ministério da Educação nos propõe manuais escolares válidos para seis anos.
Daqui a seis anos, não sei como vai ser o mundo, mas sei que vai ser muito diferente do de hoje. Façam um simples exercício e revejam as páginas dos jornais de há meia dúzia de anos, ou folheiem os manuais escolares do mesmo período histórico… Imagine-se os manuais de Informática ou de Geografia, por exemplo… Ou mesmo os de línguas, que normalmente fazem uso da informação dos media… Esta areia para os olhos dos Encarregados de Educação nem parece resistir a uma análise minimamente racional.
Bom, pelo menos um aspecto positivo poderia ter tal medida: pressupõe-se que os programas durariam esse mesmo tempo, o que seria um verdadeiro record nas duas últimas décadas. A ver vamos!

quarta-feira, abril 05, 2006

Um mundo a muitos tempos

Não me canso de me impressionar com a aceleração dos tempos. A velocidade com que tudo passa e novas coisas aparecem, para, logo em seguida, se esfumarem deixa-me sempre perplexo e meditabundo. Este agudizar do transitório e do efémero, eleito a suprema metáfora da nossa efectivamente fugaz passagem por esta vida, poderá ser um sinal de que algo de muito profundo está para mudar na raça humana. As novas gerações, crescidas no embalo da MTV e dos jogos de consola, têm já uma capacidade perceptiva que nos deixa a milhas... Quão ridícula lhes parecerá hoje a célebre montagem da cena da banheira de Psycho, de Hitchcock! Tudo tão lento, diriam eles...
Ao que parece, quanto mais aguda se torna a nossa percepção do imediato e da sucessão de instantâneos, mais débil se torna a nossa capacidade de retenção. Por outras palavras, estará o homem a perder a memória? Não é verdade que as funções não exercitadas se poderão extinguir ou embotar? E se os mecanismos da memória estão inter-relacionados com as emoções, não será plausível admitir que este anterremedo de Cyborg em que nos transformámos as vai substituindo gradualmente por sensações? Sim, cada vez mais vivemos sensações em vez de emoções! Estará, a prazo, a memória em risco? E, com ela, a nossa identidade? Ou estaremos, apenas, à beira dum salto antropológico?

quarta-feira, março 29, 2006

SEM NOME



Hoje, por infelicidade, tive o desprazer de assistir a alguns minutos do programa da manhã da SIC, apresentado por uma das várias Fátimas Lopes que pontificam nas nossas colunas sociais. Sentadinhas em sofás, três figuras de terceira categoria do nosso jet set entretinham-se em amena maledicência e estulta coscuvilhice.
Etimologicamente, Cláudio quer dizer coxo e nada nos diz que este termo não se possa aplicar a ideias tanto como a seus donos; Maya é nome de abelha e sugere de imediato “abelhudo” ou metediço; da outra descabelada senhora não sei o nome, como sem nome são as inanidades que babuja…
Então, do âmago da minha humildade agnóstica, ergui os braços ao céu e agradeci a Deus o ter-me concedido uma forma digna de ganhar a vida.

sexta-feira, fevereiro 17, 2006

Uma escola para a vida

Para além do número avassalador de escolas que este governo quer encerrar, outro aspecto me deixa preocupado e perplexo.
“Não são critérios economicistas, é para o bem dos nossos alunos”, vociferava há dias o nosso primeiro. (Razão tem o Zé Pedro Gomes, quando diz que Sócrates não fala com os portugueses, grita com eles).

Com certeza que não foram razões orçamentais que levaram a nossa ilustre ministra da educação a defender, em visita a um estabelecimento de ensino, que os alunos deveriam frequentar sempre a mesma escola, desde o 1.º ciclo até ao 12.º ano de escolaridade. Foram, sem dúvida, razões pedagógicas!

Só quem não sabe o que se passa nos intervalos, nos recreios, em zonas mais ou menos abertas, mais ou menos vigiadas, é que poderá conceber um idílico jardim-escola onde alunos de todas as idades e proveniências convivem em sã camaradagem, os mais velhos ensinando as delícias da vida saudável e o prazer do dever cívico, os mais novos, solícitos e ávidos de conhecimento, seguindo o exemplo dos mais experientes.

Só quem desconhece que o vício das drogas é incutido nas crianças de tenra idade por jovens mini-traficantes / consumidores, que alguns alunos se encontram nos recintos escolares com o único objectivo de estarem perto do público-alvo, é que pode ter ideia tão peregrina.

Só quem vive noutro mundo e ignora as cenas de agressão e ameaça e roubo e extorsão de que normalmente os mais novos são vítimas nas escolas deste país, é que poderá propugnar medida tão airosa.

Mais espantoso é ver os elementos dos executivos corroborando a bondade de tal dislate. Será que apenas lhes interessa alargar o seu poder? Terão a ilusão de se engrandecerem mais quanto maior o número de docentes sob a sua alçada e mais variados os graus de ensino?

Por que não manter os cidadãos no mesmo edifício, desde a maternidade até ao lar da terceira idade? isso é que era uma ideia!

Com medidas destas, quem pode e tem testa corre para o ensino privado (embora lá não se livre de tudo isto…). Mas se o interesse oculto, para além de poupar no orçamento, é alimentar o ensino privado em detrimento duma dignificação do ensino público, então, não nos podemos surpreender, pois é isso que se tem vindo paulatinamente a fazer em Portugal desde o cavaquismo e o pulular dos cogumelos do ensino superior.

quarta-feira, fevereiro 01, 2006

BUNDA LARGA


Diz Bill Gates, e alvitra bem, que as tecnologias são importantes, mas o essencial é a formação, é a valorização dos recursos humanos.
Exulta Sócrates com a quase-verdadeira notícia de que todas as escolas portuguesas estão dotadas de banda larga. Sem dúvida que é importante que os utilizadores dos computadores não esperem eternidades para abrir páginas ou não tenham que se apinhar às dúzias em torno de um velho 486. Mas recomenda-se alguma atenção ao conteúdo, à substância, para não se cair na mesma asneira do balofo sucesso escolar. Recusemos esta tendência neo-barroca de sobrepujar as aparências.
É preciso que se saiba que grande parte, se não a parte de leão, dessas auto-estradas da informação não estão ocupadas com investigação útil e actividades enriquecedoras. Quem observa o que se passa por esses templos que são algumas salas de informática, vê bem em que se ocupa essa banda larga: jogos on-line, de preferência com grande profusão de sangue, horas intermináveis de “chats” perfeitamente despropositados (tantas vezes a paupérrima conversação se entabula com o colega que tecla igualmente dois computadores ao lado), sem esquecer rápidas incursões em alguns sites educativos, de onde se sacam airosamente textos e fotos que, depois de uma breve e incipiente reformatação vão constituir os benditos trabalhos escolares que ocuparam os alunos durante trimestres inteiros! E vão pomposamente assinados na própria capa pelos alunos que os compilaram.
Se ninguém fizer nada, em breve depararemos com mais uma daquelas surpresas –OOOOPS! – que só surpreendem por ser surpresa para alguém: milhares e milhares de jovens com certificação informática que pouco mais sabem que utilizar o copy-paste e abrir uma sala de chat.
Se querem mexer nos exames, aí está uma boa oportunidade: submeter a exame prático as competências das TIC’s!

domingo, janeiro 22, 2006

O cinzento veio para ficar


Talvez daqui a cinco anos, o arco-íris possa romper das ramas de chumbo. Até lá, resta-nos carpir com Fernando Pessoa

Nem rei nem lei, nem paz nem guerra,
define com perfil e ser
este fulgor baço da terra
que é Portugal a entristecer –
brilho sem luz e sem arder,
como o que o fogo-fátuo encerra.

sexta-feira, janeiro 20, 2006

Pobres por dentro e por fora?


Nada me move contra o mundo necessariamente frívolo da moda. De certa forma, a voragem incessante dos figurinos e a contínua exigência da novidade funciona como uma boa metáfora da nossa existência e particularmente dos nossos dias. Devo dizer, porém, que há certos aspectos do bem-vestir de prêt-a-porter que me chocam e chegam até a entristecer por momentos, de tal forma estampam, a um só tempo, a nossa arrogância e o nosso decadentismo.
Exemplo disso é a moda da roupa esfarrapada, rasgada, remendada, encardida e desbotada. Confesso que os novos maltrapilhos chic, envergando vestes de avultado preço, me confundem um pouco o espírito, talvez já empoeirado de conservadorismo.
Impressiona esta arrogância ocidental de simular a pobreza; é como que uma ambulante e permanente acusação “Algures, há andrajosos que passam frio e têm fome. Nós andamos assim porque é belo!”. Não consigo verdadeiramente captar a essência desta tendência. Subverter a própria moda, como fizeram os modernismos às artes plásticas, sobretudo? A moda pôr-se em causa a si própria através da ironia?
Mas como as calças e os casacos puídos e desbotados do ano passado não são como as calças e os casacos puídos e desbotados deste ano, tais peças acabarão irremediavelmente no baú ou nos contentores de ajuda para África.
Gostava de ver a cara do africano a quem o membro da Cruz Vermelha estende uma camisa rasgada e remendada: - Lá em Portugal, andam com a roupa mesmo até ao fim!...

sexta-feira, janeiro 13, 2006

Gostei


Gostei da homenagem que Manuel Alegre fez a Miguel Torga na aldeia-natal do imorredouro poeta – S. Martinho de Anta . Gostei de quando o candidato Alegre o considerou seu pai espiritual e lembrou que recorria à leitura da sua poesia, sempre que, durante o exílio na Argélia, pretendia regressar a Portugal.
Gostei dessa romaria simbólica ao rude solo transmontano, lá onde a urze tece a luta da sobrevivência e o iberismo bebe da ancestralidade telúrica, longe do bulício das cidades e perto do âmago da existência humana primordial.
Gostei de pensar que poderíamos ter como presidente um homem de cultura, em vez de um tecnocrata; um homem de palavras, em vez de um homem de áridos algarismos, que mal disfarça uma vaidade serôdia e professoral.
Gostei de ver Alegre semeando a esperança no ansioso húmus lusitano.

terça-feira, janeiro 10, 2006

Parco com as Parcas

Vultos esquivos tentam roubar-me a nitidez
De saber que talvez venhas
Outra vez

Delicio-me com a sua agonia, espectros surpresos
Da mesmice da manhã
Outra vez

Arrumo agora as folhas onde gravámos a indiferença
Que votávamos ao tempo
Sempre