terça-feira, agosto 21, 2007

The meaning of life

Alinho o lápis pelo canto inferior da base para copos. Alinho o corta-unhas pelo bico do lápis. Duma ponta do corta-unhas, traço uma linha imaginária num ângulo de 45 graus com o comprimento igual ao dobro da altura do lápis. Nesse ponto deposito uma sandes de queijo. Calculo uma bissectriz no pão e cravo-lhe um palito com uma azeitona. Na sombra da oliva, ergo um copo de vinho cheio com o número de gotas igual ao total de semanas que vivi até hoje.
Afinal, há um sentido da vida.

terça-feira, agosto 14, 2007

Reencontro















(a Miguel Torga)

Reencontrei-te hoje à tarde

Estavas anichado na tua voz litúrgica
Falavas muito mais baixo que os teus poemas
E todavia ribombavas
Mais fundo que uma fraga fendida por um raio
Sussuravas mais alto que as urzes no crepúsculo
Falavas para o vazio
Quem te aprisionou sabendo que estavas irremediavelmente
Prisioneiro da tua sede de liberdade?
Reencontrei-te e estavas arrumadinho com datas e lugares e tudo
Tua voz engaiolada em tons de lounge de hotel
A tua missa, quem a saberá?
Como pareciam acolhedores os ecos sintéticos da tua alma
Como soavam afáveis as tuas sílabas
Terias caído na vertigem da delicadeza?
Mil vezes, não!
A tua voz só tem lugar na crua exactidão do negro sobre o branco
Ou melhor dizendo do branco sobre o negro pois a luz só está no que não se diz
Não te reconheci
Mas reconheci-me
vi-me esperneando no espasmo do espanto
vi-me sangrando no abandono do Pai
vi-me palpitando as dores da terra pródiga
vi-me tacteando titubeante esta vida de barro
vi-me perante a nudez dum socalco ancestral

vi-me petrificado de dúvida e de certeza na mesma ígnea fusão

os pedaços de papel juravam lealdade
garantiam a perpetuação impossível
erguiam-se da lama e marchavam alegres da sua missão
Oh, oráculo de Dioniso e Satanás
Que portas para o precipício franqueaste?
Que mão pode sentir o abraço fraterno da verdade?
Que ouvidos podem estender uma toalha alva
aos gemidos de Orfeu?

Que destino para as almas que se acotovelam na encruzilhada
Da dúvida
Antecâmara da comunhão com o húmus?

Reencontrei-te hoje à tarde
A voz da gravação era velha
E de ancião
Mas as tuas palavras escritas rasgavam a treva com o ímpeto da juventude
Em todo o lado nascias e voltavas a nascer
O verbo lançando penedos a grandíssimas alturas
E cá em baixo as almas confusas comemoravam o teu primeiro
Centenário.

Mito, 12 de Agosto de 2007

quarta-feira, maio 30, 2007

Matar o tempo

Estou numa biblioteca pública. Nova e com excelentes condições, embora ainda com um acervo em crescimento. Muito espaço, muito claridade, óptima arquitectura, arejada e dialogante, diligentes e afáveis funcionários. Bons sofás em frente de óptimos equipamentos de audiovisual para a fruição de música e cinema. E muitos computadores, com ligação à Internet, claro. Muitos utentes, na maioria, jovens.
Alguns demonstram até algum entusiasmo, murmurando, eufóricos, no limite do civismo. Distraído, rodo o pescoço em busca displicente da origem de tal ânimo. Agora entendo, estão a disputar um daqueles jogos de realidade virtual 3D, em que se empunha uma pistola e se tenta dizimar quem quer que surja pela frente. E lá estão eles, alguns quase homens, de olhos brilhantes e sorriso infantil, clicando nas teclas assassinas. E matam, e matam, e matam, e matam...e matam?


Quem sabe se, um dia, o serão mesmo chamados a fazer?

quarta-feira, abril 25, 2007

Vim

Vim ver-te. É raro vir cá abaixo. Estás na mesma posição, espreguiçado no afago das silvas. Cá abaixo não chega o vento cortante nem o sol arranha com tanta força. Estás na mesma. Talvez diferente de quando estavas lá em cima, no alto da colina, quando o vento te eriçava os musgos e o sol te castigava as costas, enquanto eu dormia aninhado na minha ignorância, enquanto os medos germinavam. Estás na mesma. Talvez mais calado. Sempre cultivaste o silêncio. As palavras sabiam-te a fel. No silêncio estendeste os teus utensílios. Com o silêncio fabricaste as tuas planícies.
Não esqueço o dia da tempestade. Havia uma música verde no ar. Um aroma de pão a entrar no forno. Um frémito de dúvida percorreu as nuvens. O raio caiu, indiferente como uma flecha, certeiro como a fome. E tu caíste, desamparado pela colina abaixo. E eu fiquei a olhar para baixo, os olhos desenrolados nas torrentes de chuva. Senti os ossos líquidos, a alma vitrificada. O primeiro esvoaçar de medo tocou-me no lóbulo da orelha esquerda, agitando as portas mais abaixo. Olhei para cima e não vi nada. Senti o primeiro espigão a crescer-me nas costas. Caíram-me os dentes, os olhos apodreceram e, em seu lugar, cresceram duas pedras. Não consegui chamar pelo teu nome.
Arrependi-me de não ter descido à planura, incrustado no penhasco. Faço-o agora. Vejo que continuo por aqui. Vim ver-me.

domingo, fevereiro 25, 2007

Do you feel stupid?

Não resisto a transcrever aqui uma citação de Flaubert, saída hoje no Público:

"Ser estúpido, egoísta e ter boa saúde são três requisitos para a felicidade, mas se a estupidez faltar, está tudo perdido."

sábado, fevereiro 10, 2007

Tragédia à portuguesa

Todos conhecemos as tradicionais editorias dos órgãos de comunicação social: política, sociedade, desporto, internacional, etc., cujos chefes são os editores, responsáveis pela orientação editorial do tratamento jornalístico de cada vertente e, sobretudo, pela determinação do “agenda setting”, ou seja, da escolha dos assuntos a tratar e da forma de os tratar.
Ultimamente, tudo indica que haja uma nova editoria a imperar nas televisões: a da “tragédia”. Sabedores da avidez mórbida dos telespectadores, os senhores das televisões parecem ter estabelecido prioridades: tudo o que possa conter algo que cheire a tragédia, a drama, a horror.
Seja porque o fenómeno do aquecimento global obriga, seja porque as verdadeiras notícias escasseiam (ou a vontade de as procurar), cada vez se torna mais frequente a abertura dos telejornais com alertas amarelos emanados da Protecção Civil, ora porque vem aí muito frio (que inesperado, em pleno Inverno!), ora porque vai chover (pasme-se!), ora porque o vento vai redobrar de intensidade. Meu Deus, parece que nevou na serra da Estrela! Dizem que, numa rua de Tomar, dois tapetes ficaram encharcados durante a noite!
O pior é que os Fados eternos não colaboram e raramente acontece algo de verdadeiramente “trágico”, como se desejava desesperadamente. Não podem cair pontes todos os dias…Verdadeiramente trágico é quando se interpela o chamado popular que por ali ciranda, ao cheiro das televisões: - O frio? Ah, menina, é o tempo dele!” Insondáveis mistérios da sabedoria proverbial…
Assistimos, pois, a grandes “tragédias” por alturas da hora de jantar: as personagens não são nobres, mas o horário, é-o; desde logo se manifesta a hibris, o desafio que a falta de acontecimentos lança a um editor em desespero e que o leva a arriscar a notícia virtual; dilacerante é o pathòs, o sofrimento de quem tem de suportar tamanhos dislates; toda a reportagem logo se revela um anti-clímax; de pseudo-facto em pseudo-facto, de peripécia em peripécia, com a ajuda do jovem e voluntarioso estagiário preparado para arrostar a intempérie, mas que tem de pedir ao operador de câmara que lhe sopre no cabelo de vez em quando, caminhamos até à anagnórise, a revelação total: a notícia é que a natureza continua a fazer o seu trabalho. A catástrofe é que a comunicação social não faz o seu. Quanto ao senhor editor de “Tragédia”, não nos resta muito mais que mandá-lo catarse.

Volta, Artur Albarran, estás perdoado! O drama, o horror, a tragédia…

quinta-feira, janeiro 18, 2007

Antes de adormecer

No afago da noite
Unimos a respiração
Remando sobre cansaços e sonhos
Como passageiros de veludo
Como asas rodopiando entre as flores
Olhámos o sol de frente
E sorrimos
E continuámos viagem, rindo estrondosamente
Que escadas que fontes que rios
Nos ligam ao lume da certeza?


Mito, 17-01-07

terça-feira, janeiro 09, 2007

SICK

O diploma conhecido por “Lei da televisão” (Lei n.º 32/2003, de 22 de Agosto) consagra no seu artigo 24.º alguns limites à liberdade de informação, que, no fundo, se prendem com a dignidade humana. Por exemplo, vejamos o que se estipula nos pontos 1 e 2 (os sublinhados são meus):

“1 - Todos os elementos dos serviços de programas devem respeitar, no que se refere à sua apresentação e ao seu conteúdo, a dignidade da pessoa humana, os direitos fundamentais e a livre formação da personalidade das crianças e adolescentes, não devendo, em caso algum, conter pornografia em serviço de acesso não condicionado, violência gratuita ou incitar ao ódio, ao racismo e à xenofobia.

2 - Quaisquer outros programas susceptíveis de influírem de modo negativo na formação da personalidade das crianças ou de adolescentes ou de afectarem outros públicos vulneráveis só podem ser transmitidos entre as 23 e as 6 horas e acompanhados da difusão permanente de um identificativo visual apropriado.”

Se esquecermos o bom gosto, a boa formação, o bom senso e a sensibilidade, qualidades talvez consideradas risíveis por muitos, esbarraremos, ainda assim, na imperturbabilidade da lei. Práticas que a ofendam, são ilegais ou, pelos menos, irregulares, e devem ser denunciadas, bem como daí retiradas as necessárias consequências.
Vem isto a propósito de, no passado domingo, à tarde, na SIC, canal aberto e generalista, abrangido por esta legislação, ter visto exibir um programa de “wrestling”, esse lamentável e degradante espectáculo com tão perniciosos efeitos nas nossas crianças e adolescentes, no que tem de incitamento à violência gratuita e à boçalidade grotesca.

Quando tantos males e tantos culpados se apontam no falhanço da nossa educação, quem pára as televisões nos eus crimes de lesa-formação? E onde pára a Entidade Reguladora para a Comunicação Social ?
E que diria um responsável da SIC ao filho se ele lhe aparecesse em casa ferido, porque o “Piranha” da turma resolveu ensaiar nele um golpe novo aprendido na sua televisão?


NOTA: A situação prevista no ponto 2, que se refere sobretudo ao horário de transmissão configura uma contra-ordenação grave e é punível com coima de 20 mil a 150 mil euros, enquanto que a infracção ao ponto 1 é considerada uma contra-ordenação muito grave e prevê uma coima variável entre 75 mil e 375 mil euros, admitindo-se mesmo a hipótese de suspensão da transmissão por um período de 1 a 10 dias. Talvez por isso já não veja na grelha de programas da próxima tarde dominical tão edificante programa.