domingo, agosto 24, 2014

Cap. IV - Em cima.



Teresa não tinha pressa. Sabia que o tempo não esperava porque não podia. Ela, sim.
Deitou-se num recanto florido, aspirando com sofreguidão tranquila os perfumes exalados. Levantou cuidadosamente a fímbria da túnica e procurou com o tacto o único objeto que trouxera consigo. Não, não era uma caixa.
Colocou-a em cima de uma pedra lisa e deixou-a receber os raios luminosos como carícias. Vagarosamente, as suas cores acordaram, enrubesceram primeiro, faiscando finalmente. Teresa conhecia de cor estas transmutações. Naquele dia, assomavam mais vivas e jubilosas que nunca. O único mistério das coisas é cada uma conter todos os mistérios das outras.
Fora um longo percurso. Agora, sentia que tudo não passara de um relâmpago. Como pudera pensar que eternidades a separavam deste momento?
Voltou a aconchegar o objeto que parecia uma caixa e levantou-se. Decidiu-se a iniciar a subida. Conseguia entender a disposição de cada pedra, o lugar de cada erva, o significado de cada flor, o alinhamento de cada grão de poeira. Tudo lhe surgia claro e evidente.
Lá em cima, fulgia de novo a pequena luz mortiça. Sob o tecido sentiu um calor sereno.
Teresa não sabia quantos dias ou meses demoraria a alcançar o longínquo brilho que a chamava sem chamar. Como num sonho, entre um olhar benevolente sobre uma ave branca pousada num penedo e um pestanejar prolongado de comprazimento, soube que chegara ao seu destino. Estava no cume. Lá em baixo, pradarias de neblina estendiam-se sem fim. Pareceu-lhe ver um vulto diáfano de mulher a dormir sob uma árvore, lá em baixo, muito longe. A aparição não durara um milésimo de segundo.
À sua frente, uma pequena gruta. Ouviu ruídos no seu interior, como passos titubeantes. Algo semelhante a um restolhar por entre ramos secos. Sentiu um torpor apaziguador percorrer-lhe toda a pele e abrasar-lhe os olhos.


Vindos da penumbra, dois pares de olhos fixaram os seus, sem surpresa, e ambos se sentiram sugados por um vórtex que os levou a um passado longínquo, às suas existências separadas…

quarta-feira, agosto 13, 2014

Cap. III - Sentado, de novo.



Estava sentado, de novo.
A neblina voltara a cobrir tudo com o seu hálito insípido. Mas tinha quase a certeza de que tinha descortinado um breve fulgor singularíssimo. Como se fosse uma alma. Teria de estar atento. Não iria perder a oportunidade.
Lentamente, caminhou até à entrada da gruta. Pela enésima vez, inspecionou os milhares de pequenos retângulos, perfilados como guerreiros de terracota. Tivera sorte em ter encontrado uma gruta em cujo interior cresciam árvore de ramos finos e sem folhas. Os galhos eram agora o seu retábulo, com os retângulos de papel em vez de folhas, com se fossem vidas suspensas numa árvore genealógica. Parecera-lhe bem, mas, enfim, a qualquer momento, poderia alterar tudo isso. Neste momento, pareciam em sintonia cósmica. Eram a sua única ligação à outra existência. Melhor dizendo, talvez fossem a única ligação que a atual existência permitira à anterior. Naquela em que se chamava Heitor. Aquele que guarda, que retém, que possui.
Agora, nada guardava, nada retinha, nada possuía. Na verdade, tudo se tinha alterado ou invertido. Era agora ele quem era guardado. Talvez sempre assim tivesse sido, ele é que nunca tinha percebido. Como é difícil ver alguma coisa de olhos abertos!
Durante muito tempo, não entendia por que o fazia. Tivera mesmo momentos em que duvidara da sua sanidade mental. Não sabia ainda que o mais verdadeiro é o que não tem explicação.


Por vezes, lembrava-se de Modesto, o Peixe. Modesto! Que nome tão apropriado! Sorria, infantil, pensando nas duas irmãs sempre de mão dada: Modéstia e Sageza. Duas manas bem matreiras. Fosse como fosse, era a única pessoa que não o julgava louco ou tarado. Que ignorância o dominara ao pensar que era Modesto quem estava fechado num aquário. O seu olhar zombeteiro, o ondular das barbatanas bem o tentaram avisar. Como tinha sido estulto em julgar que quando abria e fechava a boca não estava realmente a desafiar. Quantas línguas fala uma pessoa e quantas pode aprender? Na altura, não adivinhava que basta uma.

segunda-feira, agosto 11, 2014

Note.




Sim.
De novo o azul.
Só mais tarde o celeste se faz favor.
Talvez.
De novo o negro.
Só mais tarde as cinzas se faz favor.
Não.
De novo o branco.
Só mais tarde o esquecimento se faz favor.


Obrigado.

Cap. II - Muitos




A muitos quilómetros dali, um vulto feminino contorcia-se freneticamente. Soltava urros nunca antes ouvidos. O seu rosto sardento começara a iluminar-se. Agora, cada sarda brilhava com exuberância. Sentiu um calor avassalador crescer dentro de si e quase levitar. Ou teria levitado? De súbito, um frio glaciar apoderou-se do seu coração, que sentiu fervilhar como se nele vivessem milhares de corpúsculos efervescentes.
Então, uma calma imensa.
Não sentia qualquer fadiga, mas abraçou-se a uma árvore e deixou-se dormir.
Esteve assim muito tempo. Apenas sentia que nada voltaria a ser como antes. Sim, Teresa teve a certeza inabalável que nunca mais voltaria à vida anterior. Soergueu-se e aspirou a neblina. Precisava de um sinal, para iniciar a marcha. Ao longe, as montanhas azuis pareciam querer dizer qualquer coisa. Os seus cabelos flutuavam ligeiramente, como se fossem velas ansiosas pelo início da viagem. Lentamente, despojou-se do manto e descalçou as sandálias. Lançou-as por uma ravina ali perto. Antes de serem engolidas pelas névoas, pareceu-lhe que se desintegravam.
Iniciou, então, a caminhada. Serena e determinada. Solta e presa ao fio do caminho. Não havia vereda, por isso, deslocava-se por entre os penedos, tranquilamente, por sobre teias de musgo.
A neblina parecia não querer levantar-se. Conseguiu divisar o voo de aves de rapina. O seu movimento assemelhava-se ao rendilhar incessante das anciãs. Ficou a observar os seres alados pontilhando os ares, em percursos aritméticos. Desenhavam algo, isso era certo. Um padrão, uma forma, palavras, códigos? Ou tudo isso? Por que eram brancas, todas as aves? Por que eram inúmeras e pareciam apenas uma?
Pensou que seria melhor ficar ali, imóvel, perscrutando os ares. Deitou-se de costas no chão e fechou os olhos para ver melhor. Outra vez a sensação de quase levitação.
A certa altura, os polegares dos pés começaram a dançar no ar. Livres de peso e prenhes de embriaguez. Cada vez mais vigorosos, arriscavam-se a levar consigo todo o corpo.

No pico mais alto da montanha azul, adivinhou uma ténue luminescência. Baça, mortiça, irreal. 
Então, compreendeu.

Cap.I Sentado

Estava sentado. Melhor dizendo, reclinado, ao jeito dos antigos que não se deitavam para dormir, com pavor de morrerem durante o sono. Mas não dormia, não conseguia conciliar o sono. Não, porque estivesse agitado ou nervoso. Não. Era mais uma sensação de ansiedade entediante, mas sem moedouro no estômago. Detestava estes tempos mortos, no intervalo entre cenas intensas. Ultimamente, tinha perdido o jeito para adivinhar a sua emergência. Tinha cada vez mais dificuldades em ler os sinais. Ou talvez o excesso de acuidade analítica o impossibilitasse de intuir com mais clarividência. Sentia-se cada vez mais sozinho também.
Ao fim de muito tempo de silêncio de pensamentos, soergueu-se e tentou vislumbrar o que se passava para lá do horizonte. Ah, o costume. Vezes e vezes sem conta, assistira àquele vaivém. Nenhuma novidade parecia estar em germinação. Mas já tinha passado tanto tempo… seria possível que teria ainda de esperar mais? Virou-se de barriga para baixo e ficou a olhar fixamente o chão, a escassos milímetros do nariz. De vez em quando, desfocava a vista propositadamente, de modo a obter alguns efeitos visuais peculiares. Era uma brincadeira antiga, que sempre o divertira. Mas até as brincadeiras acabam por saturar. Decidiu então sorver o cheiro da terra. Hum, o travo da argila… Com um pequeno esforço de imaginação, começou a sentir outros aromas: areia da praia torrada do sol, erva acabada de cortar, torrões de terra húmida e fértil, moléculas de poeira soltas pelas primeiras chuvas, o substrato ressequido dos cemitérios, a lama empapada no campo de batalha. Era fácil demais e rapidamente se encaminhava para a morte. Era inevitável.
Desta vez, escolhera ficar de pé. Não fazia mal que algum ébrio lhe pudesse descortinar o halo. Às urtigas, o halo! Nunca aceitara de bom grado transportar consigo tal apêndice. Sempre o incomodara o sentido do ridículo. Não perdera a esperança de se vir a libertar de tão aberrante adereço.
Não se arrependeu. Lá longe, muito longe, algo que nunca vira antes parecia rebrilhar na neblina. 

domingo, janeiro 08, 2012

Alienação

Há duas formas de procurar a felicidade: imitar os deuses e vencer o destino ou aceitar a existência, tentando fruir os seus prazeres e minimizar as suas agruras. Na primeira via, está a busca do poder, a criação, o rito, a marginalidade e tantas outras vertigens; à segunda, pertencem todos os gestos do quotidiano, filhos da herança cultural da sobrevivência e das páginas do livro pessoal de cada um. Mas, como, nestas coisas, não é tudo a preto e branco: as duas vias, na verdade, entrelaçam-se, fundem-se e refundem-se, numa espiral contínua que é a história dos indivíduos e dos povos. No entanto, não parece haver qualquer equilíbrio entre estas duas forças, pois a sua acção e manifestação se processam de modo desproporcionado e instável, ora uma sobrepujando a outra, ora complementando-se, ora alternando-se.

Estranho e patético exercício (cómico mesmo, se visto por um hipotético deus), em que consciência e inconsciência se negam mutuamente, se atacam e fogem ao mesmo tempo.

Estas vias de alienação não passam de ferramentas do humano, para assobiar para o lado, para escapar por entre os pingos da chuva, para esquecer o horror da existência e a inevitabilidade da morte. Ou para sentir a vertigem do abismo.

Provar o gosto da morte ou a fusão no cosmos, perseguindo o esquecimento de si mesmo.

domingo, fevereiro 06, 2011

a explicação da paisagem




a paisagem é recortada.



a explicação da paisagem

com o seu plúmbeo rolo de certezas
e os seus óculos sapientes de miopia
deixa veredas niveladas
para os ronronantes motores
da nossa atabalhoada ignorância.

sempre o desespero
do conforto.
Mito, 6-2-11

quarta-feira, janeiro 19, 2011

Lírico e Épico


Nas duas mãos do texto poético - a lírica e a épica, correm as veias da sedução; com a expressão de sentimentos se seduz o Amor, com a glorificação dos heróis se seduz a Morte.

terça-feira, agosto 21, 2007

The meaning of life

Alinho o lápis pelo canto inferior da base para copos. Alinho o corta-unhas pelo bico do lápis. Duma ponta do corta-unhas, traço uma linha imaginária num ângulo de 45 graus com o comprimento igual ao dobro da altura do lápis. Nesse ponto deposito uma sandes de queijo. Calculo uma bissectriz no pão e cravo-lhe um palito com uma azeitona. Na sombra da oliva, ergo um copo de vinho cheio com o número de gotas igual ao total de semanas que vivi até hoje.
Afinal, há um sentido da vida.