Todos conhecemos as tradicionais editorias dos órgãos de comunicação social: política, sociedade, desporto, internacional, etc., cujos chefes são os editores, responsáveis pela orientação editorial do tratamento jornalístico de cada vertente e, sobretudo, pela determinação do “agenda setting”, ou seja, da escolha dos assuntos a tratar e da forma de os tratar.
Ultimamente, tudo indica que haja uma nova editoria a imperar nas televisões: a da “tragédia”. Sabedores da avidez mórbida dos telespectadores, os senhores das televisões parecem ter estabelecido prioridades: tudo o que possa conter algo que cheire a tragédia, a drama, a horror.
Seja porque o fenómeno do aquecimento global obriga, seja porque as verdadeiras notícias escasseiam (ou a vontade de as procurar), cada vez se torna mais frequente a abertura dos telejornais com alertas amarelos emanados da Protecção Civil, ora porque vem aí muito frio (que inesperado, em pleno Inverno!), ora porque vai chover (pasme-se!), ora porque o vento vai redobrar de intensidade. Meu Deus, parece que nevou na serra da Estrela! Dizem que, numa rua de Tomar, dois tapetes ficaram encharcados durante a noite!
O pior é que os Fados eternos não colaboram e raramente acontece algo de verdadeiramente “trágico”, como se desejava desesperadamente. Não podem cair pontes todos os dias…Verdadeiramente trágico é quando se interpela o chamado popular que por ali ciranda, ao cheiro das televisões: - O frio? Ah, menina, é o tempo dele!” Insondáveis mistérios da sabedoria proverbial…
Assistimos, pois, a grandes “tragédias” por alturas da hora de jantar: as personagens não são nobres, mas o horário, é-o; desde logo se manifesta a hibris, o desafio que a falta de acontecimentos lança a um editor em desespero e que o leva a arriscar a notícia virtual; dilacerante é o pathòs, o sofrimento de quem tem de suportar tamanhos dislates; toda a reportagem logo se revela um anti-clímax; de pseudo-facto em pseudo-facto, de peripécia em peripécia, com a ajuda do jovem e voluntarioso estagiário preparado para arrostar a intempérie, mas que tem de pedir ao operador de câmara que lhe sopre no cabelo de vez em quando, caminhamos até à anagnórise, a revelação total: a notícia é que a natureza continua a fazer o seu trabalho. A catástrofe é que a comunicação social não faz o seu. Quanto ao senhor editor de “Tragédia”, não nos resta muito mais que mandá-lo catarse.
Volta, Artur Albarran, estás perdoado! O drama, o horror, a tragédia…
1 comentário:
Deliciosa esta receita para fazer uma tragédia à portuguesa, onde as vítimas são os inocentes telespectadores. Gostei muito do trocadilho catártico...
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