segunda-feira, setembro 27, 2004

E vai daí, deu-me vontade de partilhar com algum eventual cibernauta a prosa desempoeirada de Katherine Vaz, um excerto retirado da obra com que esta californiana de origem portuguesa venceu o prémio "Drue Heiz Literature Prize". Boas leituras!

Quando Daniel desceu de pijama vestido, George disse: Dá já meia volta e toca a ir para a cama, miúdo.
Não, papá, vou ficar a ver contigo.
Vais mas é já direitinho para a cama.
A mamã disse que eu podia ficar contigo se quisesse. Disse que as orquídeas estavam a fazer-me bem.
Estou a ver que a mamã é uma hippie permissiva. Deixa-se as crianças fazer o que lhes apetece e elas perdem o rumo na vida.
Ela é o quê?
Nada. Hippie é o tipo de pessoa que todos nós éramos quando pensávamos que tudo ia acabar em bem, porque era esse o nosso desejo.
Ah! Julguei que a mamã era de Portugal, disse Daniel, sem compreender muito bem o que o pai estava a dizer.
E era. Veio para cá porque, quando éramos mais novos, a Califórnia era um sítio fantástico para se ser hippie. Mas não falemos de nós. Conversemos antes sobre ti, amigão. Como é que as orquídeas estão a fazer-te bem exactamente?
Não sei. A Irmã Angela diz que estão.
E estão?
Eu desenhei umas mãos grandes de urso a segurar numa.
Estou a ver. Fantástico. E como é que achas que isso te faz bem, amigão?
Daniel suspirou profundamente, para indicar que só queria estar ao lado dele e não ter de dissecar tudo o que diziam. Levantou uma ponta do cobertor que tapava o pai e enfiou-se por baixo.
O pai estava quente.
George pôs o braço à sua volta e recostou-se contra o apainelado da parede. Maria Luísa e a professora chamavam-lhe mãos de monstro, mas Daniel dizia que eram mãos de urso. George mal conseguia descortinar o que devia chamar às coisas, quanto mais como repará-las. Que podia ele chamar ao estender do braço, naquela ocasião, e vê-lo transformar-se numa polpa esfanicada sob o efeito de uma bala que continuou a sua trajectória, indo explodir no seu companheiro? O braço estava a envelhecer muito mais depressa do que o resto do seu corpo, os pêlos já prematuramente brancos. Nunca imaginara que partes da mesma pessoa pudessem envelhecer a ritmos diferentes. Era uma coisa que via, mas não podia reparar, como via que aquilo que Daniel desenhava era um símbolo qualquer da dor do pai: mãos desligadas, porque queriam escapar ao braço coberto de pêlos brancos.
Diz-me o que achas que as tuas mãos de urso estavam a fazer ao segurar na orquídea, disse George.
Oh, papá. Daniel esticou as pernas com uma pancada debaixo do cobertor. São mãos. Era uma flor. Uma flor não pode ser só uma flor?
Quem dera que fosse verdade. Mas enquanto Deus não decidir falar directamente connosco, receio bem que tenhamos de nos questionar sobre o que representam as coisas. Sinto muito que seja esta a regra, mas não fui eu que a inventei.
Daniel respirou suavemente. O pai parecia estar outra vez a dizer maluqueiras. Estava furioso consigo mesmo por ter falado à mãe daquele desenho estúpido e com a Irmã Angela por ter dito que era bom. Dava ideia de que o pai havia de ir parar ao Inferno por pôr em causa as regras de Deus. Não é que Daniel estivesse seguro de acreditar em Deus. Pronto, pensou em voz alta dentro da cabeça. Agora ia para o Inferno como pai. A mãe e Deidre e o Mark e o Alexander iam provavelmente para o Céu e teriam de lhes mandar de comer.

Katherine Vaz, “Como Cultivar Orquídeas se Jardins: um Manual”, in Fado e Outras Histórias

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