Manhã cedo. Orvalho a vestir toda a vegetação rasteira. Verdes mortiços competindo com cinzentos baços na paleta. O reino da água invadindo os terrenos agrícolas. Uma batalha pacífica e gloriosa aos primeiros raios de sol.
O portão abre-se, rangendo. Uma casa modesta, prenhe de serenidade rural, deixa sair os habitantes. O homem, tronco de muitos círculos de idade, caminha pesada e muito muito muito lentamente. Dirige-se para a rua, empurrando o velho motociclo. Não se sabe qual dos dois amigos apoia qual. Talvez os dois sejam um só. As rodas de um não se movem mais rápido que as pernas do outro. O coração de um não faz mais ruído que o motor calado do outro.
Já passaram largos minutos. O homem está agora na berma da estrada. Respira fundo. Ficou imóvel. A sua silhueta ganha contornos épicos na contraluz matinal. Sorve o ar fresco uma vez mais. Sente-se ainda vivo.
Num esforço sobre-humano, levanta uma das pernas. Com a lentidão da dor, galga a vertigem do selim e consegue escarranchar-se no velho motociclo. Toma fôlego. Titubeante, periclitante, com uma pancada seca do pé, põe o veículo a casquinar vontades. Um rolo de fumo anuncia a vitória motorizada. Com o olhar amarrado ao horizonte, afivela cuidadosamente o capacete. Parece ir desmoronar-se a qualquer momento.
Atrás dele, impávida, automática, a mulher aconchega-se na parte de trás do assento.
E partem, para mais um dia na vida.
1 comentário:
Assisti a esta aguarela, esta semana, depois de ter "depositado" a filhota na escola. Estava sentado no carro, lendo o jornal e esperando o Kafka regressar, quando a vida se me desvelou em mais um faiscante relance.
Enviar um comentário