Vim ver-te. É raro vir cá abaixo. Estás na mesma posição, espreguiçado no afago das silvas. Cá abaixo não chega o vento cortante nem o sol arranha com tanta força. Estás na mesma. Talvez diferente de quando estavas lá em cima, no alto da colina, quando o vento te eriçava os musgos e o sol te castigava as costas, enquanto eu dormia aninhado na minha ignorância, enquanto os medos germinavam. Estás na mesma. Talvez mais calado. Sempre cultivaste o silêncio. As palavras sabiam-te a fel. No silêncio estendeste os teus utensílios. Com o silêncio fabricaste as tuas planícies.
Não esqueço o dia da tempestade. Havia uma música verde no ar. Um aroma de pão a entrar no forno. Um frémito de dúvida percorreu as nuvens. O raio caiu, indiferente como uma flecha, certeiro como a fome. E tu caíste, desamparado pela colina abaixo. E eu fiquei a olhar para baixo, os olhos desenrolados nas torrentes de chuva. Senti os ossos líquidos, a alma vitrificada. O primeiro esvoaçar de medo tocou-me no lóbulo da orelha esquerda, agitando as portas mais abaixo. Olhei para cima e não vi nada. Senti o primeiro espigão a crescer-me nas costas. Caíram-me os dentes, os olhos apodreceram e, em seu lugar, cresceram duas pedras. Não consegui chamar pelo teu nome.
Arrependi-me de não ter descido à planura, incrustado no penhasco. Faço-o agora. Vejo que continuo por aqui. Vim ver-me.
1 comentário:
Gosto sempre dos textos cheios de sentidos, onde cada um se pode ler com as palavras dos outros. Por exemplo, o encontro com o medo e a perda irremediável da infância , por exemplo, a descoberta de que a vida nos transforma os olhos em pedra, porque, entretanto, "a alma vitrificada", por exemplo, a consciência de que nos regressamos sempre que voltamos aos outros e a tudo o que já não é.
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