segunda-feira, agosto 11, 2014

Cap. II - Muitos




A muitos quilómetros dali, um vulto feminino contorcia-se freneticamente. Soltava urros nunca antes ouvidos. O seu rosto sardento começara a iluminar-se. Agora, cada sarda brilhava com exuberância. Sentiu um calor avassalador crescer dentro de si e quase levitar. Ou teria levitado? De súbito, um frio glaciar apoderou-se do seu coração, que sentiu fervilhar como se nele vivessem milhares de corpúsculos efervescentes.
Então, uma calma imensa.
Não sentia qualquer fadiga, mas abraçou-se a uma árvore e deixou-se dormir.
Esteve assim muito tempo. Apenas sentia que nada voltaria a ser como antes. Sim, Teresa teve a certeza inabalável que nunca mais voltaria à vida anterior. Soergueu-se e aspirou a neblina. Precisava de um sinal, para iniciar a marcha. Ao longe, as montanhas azuis pareciam querer dizer qualquer coisa. Os seus cabelos flutuavam ligeiramente, como se fossem velas ansiosas pelo início da viagem. Lentamente, despojou-se do manto e descalçou as sandálias. Lançou-as por uma ravina ali perto. Antes de serem engolidas pelas névoas, pareceu-lhe que se desintegravam.
Iniciou, então, a caminhada. Serena e determinada. Solta e presa ao fio do caminho. Não havia vereda, por isso, deslocava-se por entre os penedos, tranquilamente, por sobre teias de musgo.
A neblina parecia não querer levantar-se. Conseguiu divisar o voo de aves de rapina. O seu movimento assemelhava-se ao rendilhar incessante das anciãs. Ficou a observar os seres alados pontilhando os ares, em percursos aritméticos. Desenhavam algo, isso era certo. Um padrão, uma forma, palavras, códigos? Ou tudo isso? Por que eram brancas, todas as aves? Por que eram inúmeras e pareciam apenas uma?
Pensou que seria melhor ficar ali, imóvel, perscrutando os ares. Deitou-se de costas no chão e fechou os olhos para ver melhor. Outra vez a sensação de quase levitação.
A certa altura, os polegares dos pés começaram a dançar no ar. Livres de peso e prenhes de embriaguez. Cada vez mais vigorosos, arriscavam-se a levar consigo todo o corpo.

No pico mais alto da montanha azul, adivinhou uma ténue luminescência. Baça, mortiça, irreal. 
Então, compreendeu.

1 comentário:

Graça disse...

Tens todas as mãos do mundo (e nomes) para escrever. Isto é Literatura. Da que gostamos, da que sabes construir com a beleza e leveza dos bons arquitetos. Há muito tempo que não lia nada com tanto interesse, pronto, gula, para ser rigorosa. :)