quinta-feira, setembro 21, 2006

Quem parte


Gostaria de saudar a oportunidade da edição de um suplemento dedicado à Educação, incluído no número de hoje (21-09-06) da revista Visão, que, para além de numerosos gráficos e estatísticas, contempla um artigo de fundo de uma socióloga e uma página de lugares-comuns de uma ministra.
No entanto, torna-se necessário tecer alguns reparos. A primeira parte da revista é dedicada à apresentação de dados estatísticos e conclusões oriundas do relatório da OCDE "Education at a Glance 2006". Nesta secção, são jornalistas que comentam os dados apresentados, interpretam os respectivos gráficos e sobretudo lançam as linhas de leitura para um estudo comparativo. Invariavelmente, focam-se aspectos que tendem a culpabilizar e descredibilizar a classe docente.

As fontes dos dados, para além do referido estudo, são, na sua maioria, governamentais e não são alvo de uma análise verdadeiramente crítica e objectiva. Se não, vejamos o exemplo mais gritante:
São apresentados os números do decréscimo da população estudantil e o paradoxal aumento do número de docentes. A única resposta avançada pelo jornalista é que "a explicação, qualquer que seja, foge à lógica". Mais à frente, uma tabela que ilustra o número de alunos por turma mostra que os professores portugueses, tal como os gregos, são os que menos discentes têm: apenas dez. Explicação: também nenhuma, para além da referência aos famigerados horários-zero e, de forma implícita, o facto de os professores com mais anos de serviço terem menos horas de serviço. Sem prejuízo da importância destes factores, parece-me que se olvidam outras variáveis com grande relevância.

Como sempre, mexer em números é passível das mais diversas interpretações e manipulações. Já diz o povo: "Quem parte e reparte e não fica com a melhor parte, ou não tem engenho ou não tem arte". Se fôssemos aprofundar os processos de como se chega a estes números, ficaríamos talvez chocados com a sua falibilidade e até credibilidade. Os números estão lá. Mas como se chegou a eles?

Quando se faz jornalismo, sobretudo com o nível que deve ter uma revista como a Visão, impõe-se questionar os números e lançar hipóteses que vão para lá da primeira impressão, do tal "relance". Seria talvez também interessante ouvir outras vozes que não apenas as das cúpulas e dos intelectuais de serviço, ouvir as vozes que estão no terreno. Uma simples conversa com qualquer professor comum poderia pôr em evidência este simples facto, quase sempre escamoteado nestas análises, porque não dá jeito nenhum.Refiro-me, em concreto, à pululante existência de horários incompletos. Quantos são eles? Como se repartem? Quantos professores têm apenas 6, 8, 10 horas de serviço (ganhando proporcionalmente e cerceados de outros direitos, como o subsídio de alimentação)? De que forma esta variabilidade afecta os números referidos anteriormente: o ratio de professores / alunos e o próprio número de docentes? E como se apresenta esta variável noutros países? E que dizer da sazonalidade da colocação desses professores? Alguns trabalham 2, 3 , 4 meses ou até menos, em substituições e contratos de curta duração. De que forma podemos tomar, em Portugal, o número de professores como um indicador estável, passível de estabelecer rácios e comparações com dados de outros países?

Tem mérito a iniciativa da Visão, mas merece igualmente reparos: é necessário ouvir a outra parte. Para ter mais engenho e mais arte.

2 comentários:

Anónimo disse...

Está claro e directo, como convém.
Tenho que fazer-lhe a seguinte proposta, mande-o para a revista Visão e, parte dele, faça-o inserir no Debate Nacional sobre Educação.Será muito importante colocar lá os pontos de vista que enuncia. O endereço está acessível a partir do Google. Colabore. Já lá tenho 2 textos meus.
Cumprimentos. Lia Marques

Graça disse...

Que pena alguns jornalistas não terem o teu sentido de visão, Mito. Ou a tua lucidez, que bem embotada anda neste país.