terça-feira, janeiro 11, 2005

Eça não esquece

Como a inspiração me falta e o pobre do blog ameaça já morrer à míngua, permito-me transcrever, com a obrigatória vénia, este saboroso naco de prosa do tão sagaz quão excêntrico Pulido Valente. Para além de ser certeiro e sintético, o artigo, publicado na última página do Público de 19 de Dezembro último, inclui devida homenagem ao sardónico Eça.


A dúvida de Cavaco

Cavaco pergunta se em 2015 ou 2020 vamos ficar ao lado da França e da Alemanha ou ao lado Roménia, Bulgária, Estónia, Letónia, Lituânia e Polónia. Por outras palavras, Cavaco pergunta se vamos ficar na "verdadeira" Europa, a do Ocidente, ou, como sempre, vamos continuar à margem. Boa pergunta, velha pergunta. O actual desespero do país não deriva no fundo da estagnação económica (tivemos pior), nem da crise política (tivemos muito pior). O que nos preocupa, o que nos rói é o "atraso", a "distância" que aumenta e nos separa da "civilização". Queríamos ser como "eles" são "lá fora" e até, um breve momento, pensámos que seríamos, mas parece agora que não somos, nem nunca seremos. Esta humilhação, esta catástrofe, desabou invariavelmente sobre Portugal, quando, a seguir a um período de amargo isolamento, a comunicação com a Europa (repito com a do Ocidente, o nosso modelo) foi intensa e fácil, e permitiu a esperança de um país "regenerado" ou “modernizado” ou "renovado", que se recusou a nascer. Em 1851, depois do absolutismo e das guerras civis, durante o “fontismo”, Portugal sonhou ardentemente com a Europa. Quinze anos mais tarde, o sonho estava desfeito e, em seu lugar, já se instalara um abatimento, um desprezo e um azedume, que Eça exprimiu melhor que ninguém e fez dele o escritor perene da língua. A Pátria “decadente” não passava, afinal, de uma coisa risível.
E à volta dessa "coisa" mesquinha e sem destino, a República e a Ditadura tornaram a levantar a muralha da China. A ideia da Europa era interdita; era uma veleidade sem sentido. Com o "25 de Abril", Soares, primeiro, e Cavaco, depois, ressuscitaram a grande fantasia nacional. Desta vez, sim. Portugal pertencia oficialmente à Europa, Portugal ia mesmo "sair da cauda da Europa". O "fontismo" trouxera a "ordem" e o comboio. O "cavaquismo" trouxe virtuosamente o Estado Previdência e a auto-estrada. O país, no essencial, não mudou. Em pouco tempo, afogado em dívidas, caía na sua habitual tristeza e esbracejava à procura de uma salvação qualquer. Infelizmente, hoje não há sequer um Eça para contar a história.

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